sexta-feira, 29 de maio de 2009

Por trás das flores, covardes

A ditadura-civil militar terminou no Brasil. Mas o Brasil não se livrou dela. As duas décadas de arbitrariedade ainda moldam algumas mentes, geralmente as que estiveram acostumadas a torturar, seqüestrar e assassinar com o respaldo dos poderes público e privado. Ou as que se acostumaram a achar isto natural. Mas por que me recordo disto?
Ah, sim. No último final de semana estive numa exposição de orquídeas em Maricá, perto do Rio de Janeiro. Havia pelo menos uma centena de plantas logo ali, bem ao lado da praça da cidade. E floridas! Quem conhece a beleza de uma orquídea deve imaginar; todas as cores e formatos e perfumes... uma beleza!
Tudo corria dentro da normalidade até que os organizadores da exposição expulsaram uma cidadã que apreciava as flores. Motivo: ela carregava uma cestinha de biscoitos. A senhora era mulata, devia ter seus sessenta anos, e me disse que a botaram pra fora porque acharam que ela estava vendendo seus biscoitos lá dentro: “Mas eu só estava vendo as flores”.
Como se não bastasse, um dos organizadores tentou dificultar a vida de outro trabalhador informal. Lá de cima ele gritou: “Vou chamar a polícia! Aliás, deixa que eu mesmo vou aí embaixo!”. Desceu rapidamente para repreender o rapaz que panfletava no meio da rua, a uns 15 metros da porta do Esporte Clube Maricá, onde era realizada a exposição. Eu imediatamente me identifiquei como jornalista e perguntei a ele qual a razão dessa agressão num logradouro público. Ele: “Não reconheço em você autoridade nenhuma, não tenho nada a declarar”. Sim, e qual a sua autoridade sobre a rua, um lugar público? Sem nenhuma preocupação por estar literalmente ao lado de uma delegacia de polícia, o sujeito ainda teve a coragem de ameaçar o panfleteiro e de me ameaçar junto antes de retornar para a exposição – ameaça que fiz questão de registrar na delegacia.
Detalhe importante: pouco depois fiquei sabendo que outro organizador da exposição é um coronel que serviu durante a ditadura, justamente no Araguaia, lugar onde cidadãos brasileiros foram brutalmente torturados e assassinados por agentes do Estado.
Para um cidadão agir desta forma contra dois trabalhadores não basta que seja um preconceituoso ingênuo ou um fascista convicto. É preciso mais. Pra quem alguém aja desta maneira nas relações cotidianas é preciso que tenha sido criado numa sociedade onde os sistemas de educação e informação são, no mínimo, coniventes com o fascismo social que mantém nosso país entre os mais atrasados do mundo em termos de cidadania e Direitos Humanos. Hipócritas, escondem-se atrás de belas imagens, flores inclusive, para que não assumam para si o peso da responsabilidade de suas práticas violentas. Em essência, não passam de covardes.
Marcelo Salles é jornalista, coordenador da revista Caros Amigos no Rio de Janeiro, editor do Fazendo Media (http://www.fazendomedia.com/) e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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