Brasil-Turquia (1) x (0)Sanções
19/5/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
À medida que se aproximava o Dia D em Teerã, foi como se o mundo todo acompanhasse um sorteio de loteria. O presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, a caminho para Teerã, disse que as chances de convencer a República Islâmica a aceitar um acordo de troca de combustível nuclear aproximavam-se de 99%. O presidente da Rússia Dmitry Medvedev, depois de encontrar-se com Lula em Moscou, na sexta-feira passada, disse que as chances aproximavam-se mais de 33%. E o Departamento de Estado dos EUA, via secretária Hillary Clinton, estava mais para impedimento preventivo, apostando no 0%.
Lula ganhou a aposta. Se fosse partida de futebol – mês que vem, bilhões de pessoas, em todo o mundo, acompanharão a Copa do Mundo – o resultado final teria sido Brasil-Turquia 1, EUA 0, com gol da vitória no último minuto da prorrogação.
Bem-vindos ao novo eixo dos acordos: Teerã-Brasília-Ancara. Nessa 2ª-feira em Teerã, Brasil, Turquia e Irã viam seus ministros de Relações Exteriores assinarem inovador tratado de troca de combustível, pelo qual o Irã embarcará para a Turquia 1.200 kg de urânio baixo-enriquecido a 3,5%, e receberá em troca, depois de no máximo um ano, 120 kg de urânio enriquecido a 20%, para fazer funcionar o Reator de Pesquisas de Teerã – tudo sob supervisão do Irã e da Agência Internacional de Energia Atômica.
Lula descreveu o acordo como “uma vitória da diplomacia” – depois de toda a imprensa conservadora nos EUA e no Brasil tê-lo metralhado incansavelmente por intrometer-se nesse jogo de xadrez de apostas que, para aquela imprensa, seriam altas demais para seu bedelho.
Dois membros não permanentes do Conselho de Segurança da ONU, Brasil e Turquia – esgrimindo diplomacia de alta qualidade – derrotaram os EUA (e seus três aliados europeus, França, Grã-Bretanha e Alemanha), que apostavam no confronto. Foi, sobretudo, vitória dos países chamados BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). É, de fato, o contra-poder global emergente, em oposição à hegemonia dos EUA.
Previsivelmente, o governo Obama em geral, e a secretária Clinton em especial, dedicam-se hoje a requentar a conversa velha de o Irã “não respeita compromissos assumidos”. Mas não convencerão a verdadeira “comunidade internacional” do mundo em desenvolvimento; no máximo, serão algumas quirelas jogadas para acalmar (parcialmente) o poderoso lobby pró-guerra-infinita de Washington.
Ainda não completamente sancionado
Como se constrói acordo desse tipo? Muito cuidadoso, Lula destacou que o Brasil atuava como mediador, sempre insistindo em construir “confiança” no diálogo em andamento com Teerã. Mais importante que tudo, antes de chegar a Teerã, Lula conversou demoradamente com todos os principais atores – EUA, Rússia, China e França.
Em Teerã, Lula e o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan – que só voou para Teerã no último instante –, afinal conseguiram “vender” a proposta conjunta de Brasil-Turquia, de troca de combustível nuclear, ao presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad e ao Secretário do Conselho Supremo de Segurança do Irã Saeed Jalili, depois de 18 horas de negociações feitas a portas fechadas, à margem do encontro do Grupo dos 15. Os principais negociadores foram os ministros das Relações Exteriores do Brasil Celso Amorim; da Turquia Ahmet Davutoglu; e do Irã Manouchehr Mottaki.
Para Amorim do Brasil, o acordo “deve bastar” para evitar uma quarta rodada de sanções do Conselho de Segurança da ONU contra o Irã, ideia fixa obcecada de Washington/Telavive; destacou que “é exatamente o que outros países sempre disseram, que o acordo era necessário, o acordo de troca, para que as conversações pudessem prosseguir”.
Para o Chanceler brasileiro, o acordo é um “passaporte” para negociações mais amplas, de modo a assegurar que o Irã possa exercer seu “direito legítimo” de construir seu programa de pesquisas para uso civil da energia nuclear. O Chanceler turco Davutoglu disse que, agora, a bola passou para o campo da Agência Internacional de Energia Atômica: “o Irã escreverá à IAEA, e esperamos que a IAEA responda positivamente e sem demora, de modo que tenhamos resultado em pouco tempo”. E acrescentou: “Não há mais necessidade de sanções, agora que nós [Turquia e Brasil] oferecemos garantias de que só o urânio baixo-enriquecido permanecerá na Turquia”. Medvedev, embora mais contido na reação, elogiou o esforço de Brasil e Turquia e discutiu longamente com Lula, por telefone, detalhes do acordo.
Me enriqueça, baby
O acordo é semelhante, mas não idêntico, ao proposto pelo Grupo “Irã Seis” (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha) em outubro de 2009 em Genebra. Naquela versão do acordo, Rússia e França enriqueceriam o urânio. Teerã achou poucas as garantias que lhe ofereciam e apresentou outras possibilidades. Mas ninguém confiava em ninguém, e aquelas negociações fracassaram. Agora, a novidade é a entrada da Turquia – produto da estratégia de mediação partilhada entre Brasil e Turquia.
O coro dos “não dará resultados” já grita mais alto que show do Metallica. Previsivelmente, o anúncio, por Teerã, de que, com acordo ou sem, continuará a enriquecer urânio a 20% em seu território, já está levando EUA e Israel a tentar desacreditar toda a operação. Para a diplomacia brasileira essa é crítica extremamente fraca – e chamam a atenção para a evidência de que é a primeira vez que o Irã realmente aceita mandar combustível nuclear seu para ser (mais) enriquecido fora do país.
Franceses e alemães – fazendo coro a Washington –, já estão dizendo que o sucesso da mediação Brasil-Turquia não impedirá o Irã de fazer acordo mais amplo com a IAEA. O eixo do Ocidente está atualmente obcecadamente empenhado em impedir que o Irã enriqueça urânio em seu território – obcecação que contraria até o Tratado de Não-proliferação Nuclear (NPT).
Não há sinais – e a IAEA, nessa primavera, outra vez confirmou o diagnóstico feito em visitas anteriores – de que o material nuclear iraniano produzido na usina de Natanz esteja sendo desviado para algum programa de fabricação de armas. Não há sinais de que o Irã esteja tentando enriquecer urânio a 95%, taxa de enriquecimento necessária para qualquer programa de produção de armas nucleares. Mas não há o que desvie Washington da luta por conseguir aplicar uma quarta rodada de sanções econômicas (via o Conselho de Segurança da ONU) contra o Irã. Não importa, sequer, que não haja eleitores norte-americanos votantes no Conselho de Segurança. Não importa, sequer, que nenhum eleitor norte-americano jamais sequer se aproximará de lá.
O detalhado texto do acordo, de 10 itens, que o Chanceler Mottaki leu em conferência de imprensa em Teerã, não ganhou nem ganhará o espaço que merece na mídia ocidental corporativa; mas lá o Irã reafirma seu compromisso como signatário do NPT, reconhecido pelo Brasil e pela Turquia; e caracteriza o acordo como “ponto de partida para iniciar a cooperação”.
O Líder Supremo do Irã aiatolá Ali Khamenei, não imune ao brilho das galerias do Sul global, lembrou, depois de reunir-se com Lula, que os EUA estavam tão empenhados em minar todo o esforço do Brasil, porque não aceitam a ideia de “dois países independentes” – Brasil e Turquia – atuarem com potências diplomáticas de primeira linha.
O que provavelmente aconteceu foi que os BRICs, mais a Turquia, em esforço concertado ao longo das últimas poucas semanas, conseguiram convencer a liderança iraniana de que, sem alguma espécie de acordo, os EUA continuariam a pressionar a favor de mais e mais sanções “debilitantes” – e todos sabemos o que aconteceu ao Iraque em 2003.
E ambos, Khamenei e Ahmadinejad, parecem ter entendido a mensagem. De qualquer forma, o segredo do acordo esteve em descobrir um modo de operar que não ferisse a dignidade do Irã. Lula acertou: o conceito realmente operativo nas negociações foi “confiança”.
Resta saber se Washington e aliados render-se-ão às evidências. Ou continuarão a insistir em seu jogo de perde-perde?
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
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